SOBRE SER GAUCHE
Raul Albuquerque
Numa entrevista que
gravei há quase um ano, flagrei-me pensando sobre se há algo que une
todos os poetas no mesmo território. Bem... não foi algo fácil, como
devem imaginar, mas Drummond me respondeu a pergunta, em seu "Poema de
Sete Faces":
"Quando nasci, um anjo torto
desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida."
Para alcançar a totalidade do sentido dos versos, deve-se saber que
gauche significa "esquerdo" em francês - por "esquerdo", entenda-se
"diferente", "incompatível" ou "deslocado". Daí passei a cogitar que o
fato de sentir-se gauche une todos os poetas de verdade - o sentimento
de não-pertencimento. O desespero pelo que não "se encaixa" une todos os
poetas numa caverna e eles permanecem lá, o mesmo desespero que levou
alguns à loucura e/ou suicídio é que incita a poesia viva e gritada. A
expressão é tão grandiosa que o grande Manoel de Barros só fez
traduzi-la quando escreveu "O menino que era esquerdo e tinha cacoete
pra poeta". Sobre esse sentimento de não-encaixe, escreve o poeta,
maldito por excelência, Charles Baudelaire, em seu poema "L'albatros",
do livro "Les Fleurs du Mal":
"O Poeta se compara ao príncipe das alturas
que enfrenta os vendavais e ri da seta no ar;
exilado no chão, em meio à turba obscura,
as asas de gigante impedem-no de andar."
Baudelaire escreve que o Poeta "ri da seta" das palavras, dos versos,
das rimas, pois a língua e a poesia não lhe são problemas, causam-lhe
até encanto, mas "exilado" na vida comum, no plano dos atos, das
cobranças, dos horários, dos prazos de entrega, as mesmas asas (que o
fazem voar) atrapalham-no no andar.
O múltiplo (e multiplamente
gauche) Fernando Pessoa, em seu ortônimo "ele mesmo", escreve em seu
poema "Andaime" sobre o que ele não é (e acaba concluindo que ele não é o
que deveria ser):
"Gastei tudo que não tinha.
Sou mais velho do que sou.
A ilusão, que me mantinha,
Só no palco era rainha:
Despiu-se, e o reino acabou.
[...]
Sou já o morto futuro.
Só um sonho me liga a mim -
O sonho atrasado e obscuro
Do que eu devera ser - muro
Do meu deserto jardim."
Meu argumento em favor de minha teoria vem da poetisa mais mais que eu
conheço: Cecília Meireles. Ela escreve em tom de revelação óbvia que seu
estado de "poeta" é tão incomum que nem pode se encaixar nas
denominações "alegre" ou "triste", há algo mais gauche que não saber se é/está feliz ou triste?!
"Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
sou poeta."
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Com esse artigo, fechei a conclusão do que estava amadurecendo em mim.
Em uma primeira etapa da minha jornada, em que a poesia desponta na alma
juvenil, o lírico marca como passo inicial compatível com a própria
idade. Mais tarde me vem o contato maior com quem chamo de grande
iniciador da maturidade literária - Carlos Drummond de Andrade. Lendo
toda a sua obra, sinto o mesmo chamamento de ser "gauche", sendo por
muitos anos o estilo mais maduro e centrado no cotidiano da alma. Quem é
gauche sabe que a inconstância é o termômetro do artista e deparo-me
com as obras de Osho e Nietzsche que me levam a quebrar paradigmas.
Surge em mim a crise filosófica-existencial que amadureceu ao longo desses anos e se consolida com a volta aos meus trabalhos.
Ana Maria Pupato
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